segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A luz do homem


                                  Cartola e dona Zica 



Eu canto apenas o barro que cai em pó das taperas... 

         

          Percebi que tenho nas veias o mesmo sangue dos meus cavalos e que respiro o ar em torno da mulher que muda o meu jeito de respirar e tenta se alimentar das minhas palavras...

          Essa mulher terá o direito de dormir sobre o meu canto. A mulher que não entender a poesia do andante não será mulher de estar... Vai respirar o oxigênio dos mortais. Não terá o direito à imortalidade da poesia dedicada à musa do andante, que, quando sangra, limpa a ferida e estanca no gole da sanga, entrando liquidamente pela boca dos animais e morando, enfim, na alma dos que os amam...

Voltei aos jardins com a certeza de que ia chorar... 

Cartola estava lá.  Tinha a aura dos que poetizaram ainda mais o amor sem regras... Tinha o pó das construções no corpo e a sutileza do imortal cantador do desejo; na alma, musicava o vento com a boca carioca. Rude poeta sem regras.

Sem normas, sem formas.

E as rosas? E os jasmins? E as damas-da-noite? Esses exalaram o perfume roubado das madrugadas boêmias...

Eu estava lá, vi o seu peito vazio... E tinha o pó das taperas que canto.

Minhas canções trazem restos das noites do Rio vestidas de frio e emponchadas de Sul brasileiro e Norte uruguayo.

Senti falta de mim. Vi na pele negra do poeta das rosas meu jeito afro de bater no peito o samba da liberdade e a milonga do payador solitário.

O mundo é um moinho ou roda de carreta sem graxa? Para que seja ouvido o repetido lamento de quem anda...

Ouça-me bem, amor; preste atenção, querida: à beira do abismo, o poeta escreve que ainda é cedo. Ri a morte da verdade numa canção que renderá o doce sabor da eternidade.

Eu canto apenas o barro!
E a Alvorada?

Lá no morro, que beleza!
Ninguém chora, não há tristeza,
ninguém sente dissabor.



Vocês estão num bom olhar  maternamente
E são em mim a referência da poesia!
Estão em mim bem mais que a luz que vem do sol
Irmãs e mães - avós - amigas do meu dia...

Minhas mulheres...  umas foram – sem partir –
Outras ficam no sorriso do meu dia...
E algumas vão saber de mim quando eu cantar
E me encontrar na referência da poesia.

Há nas mulheres algo mais que Deus criou,
Depois que deu por nome a flor e a poesia,
E aqui estão, para enfeitar a luz do homem,
Ao adornarem sendo a luz do nosso dia.

Minhas mulheres umas ficam por querer:
Saber de mim, cuidar de mim – avós - irmãs –
E uma vem para imitar o por de sol
Depois se vai, no corpo lento das manhãs...

Minha canção tem o teu corpo e teu perfume
Por ser de ti a luz mais clara no meu dia!
Avó, irmã, amiga e mãe - por bem querer -
Eu vou viver para  escrever tua poesia...




http://www.youtube.com/watch?v=lEHA2F5cmok
Alvorada para quem não conhece Cartola.

3 comentários:

  1. São tão raros os homens que veem e sentem, de fato, o que nós, mulheres, tentamos deixar em seus corações. Que bom, para ti e para suas amadas, tu seres assim... forte e sensível. Parabéns.

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  2. Pobre, negro e morador do morro, ele fora ao longo dos anos pedreiro, tipógrafo, boêmio, vigia, lavador de carros, contínuo de ministério. Aos soluços nos intervalos da lida anônima, saíra à janela da popularidade e abastecera o samba com algumas das mais belas canções de que o Brasil teve notícia. Mesmo reconhecido como o artista genial que era, o poeta se entregava ao culto à derrota, ao ceticismo quase exultante, a uma aridez de cacto. Por dentro, no parapeito da janela, a água jorraria suculenta à primeira dentada, e talvez significasse isso mesmo a música tão amorosa que Cartola produziu, sedento, até morrer: casca de cacto por fora, água potável na seiva. Imortal. Cartola é, ao mesmo tempo, a miragem e o oásis, para quem gosta de casca espinhosa e para quem gosta de água fresca.

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  3. Leituras como essas,nos fazem escutar o coração batendo forte,mais ainda,exercita a capacidade que a alma tem de sentir de amar,aceitando que o mundo é um moinho e tritura os nossos sonhos tão mesquinhos,porque o amor dos que nos cercam e o que vive dentro de nós,prevalece sempre!

    Lindo texto,linda forma de sentimento...

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