sábado, 30 de julho de 2011

Tempo Ausente


Neste momento, aguardo a hora de subir ao palco da Coxilha Nativista de Cruz Alta - 31ª edição. Percebendo que a concentração necessária e importantíssima para estar focado no tema que represento ou defendo, como de costume os artistas e o público se referem às interpretações de músicas em palcos, começo pilchando a alma de "tempo ausente", fecho os olhos e deixo que esse sentimento saudosista penetre no subconsciente e me prepare para a luta branca.

Cantar um tempo revestido de memória, frente ao tumulto da música atual, é um desafio diário.

Hora de encilhar, mas antes de montar a cavalo, leio e divido com todos vocês o texto AQUI, escrito por Eron Vaz Mattos no livro de mesmo titulo, para que compreendam melhor a inspiração, o motivo e o tempo do meu canto.

foto Edson Larronda

AQUI

A telha de amianto - venceu as quinchas de santa-fé.
A energia elétrica - matou a lamparina, a vela, o lampião...
O automóvel - a carreta, a aranha, a carroça e o carretão.
O trator dobrou o pescoço do boi e a televisão terminou os bailes, as charlas fogoneiras, as carreiras, as serenatas campeiras, as revisões de potros...
O progresso e o tempo novo mataram os rebanhos e as comparsas de esquila a martelo...
O brete - o rodeio, as marcações porteira afora...
O rádio emudeceu as vitrolas. O caminhão matou o tropeiro.
E o homem? E a mulher? Ah! Esses ainda não; os homens e mulheres deste pago estão como cernes de guajuvira, eretos e firmes como sempre; nas suas almas está guardada a melhor fibra de uma raça crioula que jamais haverá de render-se aos ditames maléficos deste tempo que procura destruir o patrimônio maior da nossa gente que é a honra, a dignidade, o apego ao chão, ao trabalho e a honestidade, pois, sem esses referenciais, nada poderá salvar-se e a humanidade será envolvida pela erosão devastadora dos seus bens maiores e virará pó qual um rancho abandonado onde, com o passar dos anos, ficam apenas os sinais sobre a terra...
A gente do meu rincão sabe arrancar deste solo bendito o seu sustento suado e sofrido, pois já nascemos em meio a dificuldades, em meio a elas vivemos e nos sentimos envelhecer sem que tenhamos alcançado sequer o respeito por parte dos que mandam... Talvez porque sejamos humildes, puros e trabalhadores, ou quem sabe, porque descendemos de famílias dignas e exemplares edificadores da soberania da pátria.
Crescemos tranqueando atrás do arado e conversando com os bois, e por isso, temos o braço, as mãos, a alma e o coração calejados pelo trabalho pacífico, conduta que adquirimos dos nossos anteriores que balizaram rumos para nós e montaram a cavalo para defender e tornar brasileiro o chão onde pisamos e que guarda as suas cinzas.
O nosso lugar é aqui, cheirando o campo e podendo vislumbrar em cada amanhecer a paz da querência e ouvir em cada canto de sabiá ou grito de quero-quero a voz dos nossos pais dizendo que este pago nos pertence e, apenas aqui, é podemos sentir o cheiro de suas flores, a voz dos tropeiros e a palavra de Deus. Somos os continuadores dos sonhos daqueles que nos antecederam e deixaram, para nós, um pedaço de chão, um rumo a seguir, os conselhos e um enorme paiol cheio de amor e lembranças no coração.
Somente aqui se pode ouvir o silêncio, ver o sereno deitado no pasto, emponchar-se de lua e conversar com as estrelas. Apenas aqui se pode, ainda, ver as lichiguanas beijando as flores do jasmineiro do oitão, as nuvens deitarem mansas no catre azul das lagoas e a orfandade dos guaxos confundir o bico de couro cru com o úbere farto e quente das mães que morreram.
Aqui, a sombra dos cinamomos é muito mais que uma sombra; é o lugar onde comungam os mansos e xucros remoendo tranqüilos, nos sóis dos verões, a seiva dos campos e onde as espécies se igualam celebrando a vida ao redor das casas.
Apenas aqui o andante descobre o valor de um “Oh de casa” quando, sovado de corredores, bate palmas de esperanças na frente de um parapeito e as portas se abrem para ouvir os seus relatos colhidos nas estradas, pousos e bolichos... A cacimba, guardada na pipa, refresca-lhe o rosto e o lombo do pingo suado.
Aqui se conhece a volta certa dos cambões das porteiras e se entende de laços, arames e tranças, de potros e domas, de conjuntas e jugos, arados e enxadas, galeotas e mariposas, de tiradeiras e machados...
Quando o vento verga a palidez dos macegais, soprando lado norte, a chuva se avizinha e os ponchos se abrem cobrindo a garupa dos pingos de lei.
A macela floresce enfeitando o outono e vira remédio no calor da cambona e no sabor do mate. Aqui, a cordeona tem dolência de recuerdos e a guitarra tem som de pátria e querência; os galos acordam as madrugadas e o cheiro dos campos vem dormir dentro de casa.
Somente aqui os quero-queros rondam a imensidão e a estrela d´alva vem nos olhar na janela; os pirilampos ainda acendem os seus candeeiros pontilhando as noites de estrelas sobre as várzeas e os cardeais, sem gaiolas, vêm cantar nos galhos das laranjeiras...
Aqui, as mangueiras encerram os tombos dos pealos e os comandos de “forma cavalo”; os berros das vacas mansas timbram a alma da querência com refrãos enluarados de madrugadas.
As vitrolas, mesmo ancoradas na mudez antiga, contam histórias musicadas de silêncios.
Sob o teto dos galpões, as corruíras fazem ninhos nas cambonas velhas e as corujas ainda pousam nos moerões das porteiras.
Aqui os pés de arruda ainda absorvem a inveja e o mau olhado e as mulheres ainda fazem pão com torresmo; ainda se tira o chapéu para cumprimentar a todos e, aos mais velhos, chamamos senhor.
Nas fundas estradas dobradas sobre as coxilhas cruza a paciência ruminante dos mansos e os araçás buscam, sozinhos, compreender a terra afundando as raízes.
Aqui, as corticeiras mudam a cor dos banhados e abrem o dorso para abrigar a doçura das colméias; as madressilvas abraçam as copas altas dos vimais e embalam o mimetismo das jaguatiricas.
Os retratos, presos às paredes rudes, testemunham o tempo nas molduras ovais empalidecendo o que restou dos ancestrais.
As sombras valorizam os sóis e o outono despe, da folhagem, a majestade dos umbus.
Ainda se faz doces nos tachos e se benze tormentas e outros males e se lava o rosto no lavatório com jarro, bacia e saboneteira alouçadas.
Aqui, ainda se come o milho verde assado sobre as brasas e a batata-doce no forno do fogão. As mulheres ainda usam sombrinhas, lenços, na cabeça, para a lida e ainda bordam panos, aventais, toalhas, babeiros e guardanapos.
Aqui, ainda estão pelos galpões, os caules das caneleiras-pretas que se fizeram pilões para o milho crioulo virar cangica, o catete tornar-se farinha e gamelas para temperar as lingüiças e salgar o toucinho...
As chaminés dos fogões a lenha ainda fumegam pelas madrugadas e, ainda, se pode ouvir a cantiga das sangas claras, os berros dos touros e as cantorias dos grilos. As babas-de-boi tremulam nos caraguatás hasteando, em mastros de espinhos, os rumos dos ventos.
As nostalgias da campanha encontram amparo nas cruzes sozinhas quando debruçam as sombras de braços abertos sobre a teimosia dos pajonais e, por essas imagens, é que as saudades ganham a estatura dos cerros.
As lagoas são tão lindas que a inveja das coxilhas não lhes permite alcançar os arroios.
Aqui, ainda preservamos o cunho inconfundível da raça campeira; o que a maioria das pessoas já perdeu, nós guardamos com orgulho porque temos origem, história e a verdade iluminada em cada retina.
Os nossos velhos, se já não podem galopear um potro, segurar o rabo de um arado ou borcar uma mariposa, nos dão o que há de mais precioso na vida que é o gesto, o conselho e a experiência através das palavras sábias e amigas.
Aqui, ainda podemos ouvir, nas tardes quietas de outono, a batida do machado no picador da lenheira e o choro inocente de uma ninhada de ovelheiros num canto de galpão; o biguá mergulhando nas águas tranqüilas do açude e as traíras chocas mostrando o lombo para o sol.
Apenas aqui ainda se ouve, nas tardes nubladas e quentes, o tuco-tuco justificando o seu nome e as calhandras ainda encontram varais com charque para temperar o assovio.
Nas noites mornas ainda se ouve a saparia afiando o canto nas chairas dos juncais; as esporas ainda riscam o chão dos galpões e as botas têm o couro queimado pelo suor dos cavalos...
O balde do poço ainda faz gemer a roldana e tem uma ferradura ao lado da alça para encher mais depressa; a água cristalina não é insípida porque a talha-de-barro empresta-lhe um sabor acre-doce de história, tempo e saudade.
Aqui, ainda podemos presenciar as roupas simples, com remendos multicores, estendidas num coarador sobre um lageado de sanga.
Aqui, a pressa ainda não chegou; as pitangas e os guabijus temperam a canha e nutrem as gargalhadas matinais dos jacus. A infância prepara amanhãs entretida com gados-de-ossos, lombos de petiços, boleadeiras de sabugo...
Aqui, repartimos a dor em silêncio porque a alma, quando está ferida, substitui as palavras pelo idioma do coração.
Aqui, os cavalos, mais que nobres animais parceiros de árduas lidas, são quase irmãos ou mais.
Aqui, ainda podemos ver a cerração pingando dos galhos das coronilhas embarrando os passos das vacas mansas que, a cada amanhecer, vêm açoitar os seus filhos num lambido reencontro com sussurros de ternura. As taperas nos fazem chorar o coração, pois são testemunhas tristes de que alguém partiu para outro plano, cambiou de pago ou o que é pior; trocou o lombo do cavalo, a vida crioula e livre em meio à natureza; deixando, para trás, a chave de aramador, o laço, as garras de domar, para viver entre os desgarrados e tristes num arrabalde indigno, sujo e violento de uma cidade qualquer...
Aqui, a sabedoria secular ensinou que, fazendo uma cruz com carvão nos ovos de galinhas para chocar, os trovões não conseguem gorar e a vida se encarrega de “descascar” as ninhadas e espalhar infâncias de veludo nos terreiros bem varridos.
O nosso lugar é aqui porque temos, ainda, a perícia de manejar o laço e calçar o pé sustentando o tirão de um pealo de toda a trança, só na presilha.
Temos história e uma luta na qual estamos empenhados desde que nascemos; por isso, o nosso lugar é aqui onde podemos, ainda, estender a vista e enxergar a distância escondida no horizonte, pintado de campo e céu, onde Deus atou, à soga, os nossos sonhos de campeiros.
Aqui, a estrela Boieira e o Cruzeiro do Sul ainda nos servem de guias no escuro das noites e as picadas, nos matos, têm algo de mistério e assombração e nos fazem desapresilhar o coldre e encurtar as rédeas do flete.
Fomos batizamos com um galho de arruda e água benta colhida das chuvas.
Aqui, os cachorros são mais amigos e nos entendem na dor e na alegria...
Aqui, o campo ganha mais essência quando morre um cavalo e, na alma gaúcha, se aninha uma ausência dorida porque até o horizonte se muda para mais distante das casas.
Às vezes, o céu pinga pelas goteiras dos nossos tetos, apagando as estrelas, mas acende, em cada um, a sabedoria e a esperança.
Em cada fruto que amadurece está o pão que é a seiva da terra...
Aqui, a felicidade não tem anéis nos dedos e nem diplomas nas paredes, mas têm-se olhos na alma capazes de interpretar as parábolas da natureza porque sabemos que os cantos matinais dos sabiás e bem-te-vis são, na verdade, UM DIÁLOGO COM DEUS.
                                                                                       

                                                                  Eron Vaz Mattos
                                  Olhos D´água, inverno 1999.

3 comentários:

  1. Sem palavras chê. Parabêns mais uma vez meu irmão véio.

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  2. Nossa alma, a alma do campo desenhada e bordada nas belas palavras.. Gracias Paysanos!! Bjo na palma da mao com carinho, admiracao e respeito!

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