terça-feira, 3 de maio de 2011

Alambrado do Tempo



No interminável caminho a ser descrito pelos passos do andante, que ainda observa, e pensativo imagina...  encontro-me a cavalo mais uma vez. 
Duas éguas: a gateada Chacarera e a rosilha Union, sustentam e conduzem, cada qual com sua história, minha vida de determinado cavaleiro, na infinita fusão gaúcho/cavalo/estrada e pensamento!
Na quinta-feira, 28 deste lindo mês de maio, eram sete horas do amanhecer quando eu já cruzava o povoadito de SÃO MARTIM, região norte da cidade de Bagé.
Havia pousado no estabelecimento do amigo Claudio Falcão de Azevedo, que gentilmente concedeu-me uma semana de pastoreio para as já citadas companheiras de estrada. Rumava para o consagrado CTG 93, que dali, distava uns 18 km, e seria palco, a partir da tarde, de uma festa campeira em comemoração ao dia do trabalhador, neste caso o rural.
O povoado acordava calmamente...  misturando aromas de fogão a lenha, com os diversos cheiros do gado tambeiro e do bicharedo, das muitas chacrinhas que amanheciam no meu rincão.
Eu, de a cavalo e obviamente feliz, eles... habitantes dali, bocejavam mais um dia, mastigado de pobreza, no incerto da sobrevivência dos que têm pouco, e muitas vezes não raciocinam  por qual motivo lhes foi reservado o amanhecer do pouco para o anoitecer do nada...
"Trotiei" mais forte, com ganas de galopear... e tive que sujeitar e ordenar o tranco a rosilha, pois avistei na minha esquerda, já no chamado corredor da produção,  deixando pra trás a coxilha do fogo, um ranchito  muito pobre, cercado por restos de arames, apoiados na linha do alambrado real do corredor que lhe aceitara como vizinho. Feito a garcinha campeira que aguarda as sobras e belisca insetos nos vestígios do universo animal do dia-a-dia do sobreviver. Ali estava e está mais um ranchito por fora e tapera por dentro.
Era o gaúcho sem nome, o negro velho que acenou minha cruzada... não sabia ele, que eu feito a garça, vivo das façanhas campo a fora que ele deixou ...  ou foi obrigado a deixar...
Senti vergonha e orgulho...  indignação e vontade de reagir. Mas como? Se o reflexo de gerações e gerações da desigualdade social e abandono ao operário rural, que ao se sentir bicho, abre as asas da liberdade e salta para o abismo do nada. Começa a queda livre do mundo real. Presa fácil, consumida e ruminada no corredor verídico do incapaz, pois forçado a extrair-se do seu meio, perde o poder máximo das mãos. E quando lhes decepam a principal força que adquire quando: embuçá-la, estriva-se e monta... GIGANTESCO FRUTO no galho mais alto da árvore campestre que pariu estâncias, progrediu famílias e alicerçou sonhos de muitos e aguçou a ganância de tantos...
 O gaúcho sem nome e sem asas, que juntou tropilhas gordas e adelgaçadas, para as fainas brutas que revitalizam o âmago do filho do campo...  que sempre “quis os campos da estância, mas muito mais que o patrão”, veste a pilcha do despachado, perfeitamente previsto nos versos de Aureliano de Figueiredo Pinto, e morre aos poucos na soga atada ao alambrado do tempo.
Quem nasceu pra ser matungo...
Basteriado, geme ao tranco!!!
Casco quebrado da pedra
Acostumou-se a ser manco.

Com estes fragmento da Milonga Feito Alpargata, deixo para o reflexo do leitor, todo o universo que envolve esse singelo texto, preso ao imenso contexto que liga o peão "campero", desde a formação do tipo físico desenvolvido no ambiente selvagem da Pampa virgem, ao fugitivo que esconde-se de si e de todos, costeando os vilarejos, feito os cuscos de ninhadas não programadas pelo dono da cadela.

Quem nasceu para ser "perro"   
"cimarón" cresce e caminha
Pelo ouriçado de de tempo
Com cicatrizes da rinha...
                                                        Bom dia.


                                                                                                Lisandro Amaral
                                                                                               3 de Maio de 2011






11 comentários:

  1. Obrigado Lisandro por brindarnos com este magnífico texto... Obrigado por trazeres o canto dos nossos ancestrais até os dias de hoje e assim fazer com que jamais esqueçamos do porque vivemos, morrremos e renascemos em um ciclo evolutivo.
    GRACIAS

    ResponderExcluir
  2. Eu tenho acompanhado, com gosto e honra, todos os teus posts. E cada uma deles reflete com verdade a pessoa que tu és e a mensagem que tu vais deixar. É muito feliz a sensação de saber que ainda existem pessoas capazes de defender a cultura mais bonita e forte deste país. Como disse Jayme Caetano: "o eterno não morre, porque permaneço vivo!". Tu és eterno Lisandro. Não morrerás jamais.

    ResponderExcluir
  3. Buenas Lisandro...
    ...Y sepan cuantos escuchan
    de mis penas el relato,
    que nunca peleo ni mato
    sino por necesidá,
    y que a tanta adversidá
    solo me arrojó el mal trato...(Martin Fierro)

    ...E não me canso de admirar sua sensibilidade...

    Um grande abraço,Caroline Lehmkuhl

    ResponderExcluir
  4. Obrigada, Lisandro pela defesa que fazes da nossa cultura , com tanto encanto e sensibilidade !!Um grande abraço.

    ResponderExcluir
  5. Parabéns Lisandro, acima de um bom texto, uma ótima visão de mundo, isso que realmente te faz escritor, são os raros olhos em dias de cegos...

    E ainda, parabéns por ter passado com essa milonga na sapecada, ate Junho

    ^^

    ResponderExcluir
  6. ...Aqui me encontro feito um cusco "estriveiro", acompanhando cada passo deste andante que nos escreve. Admirado com a sua destresa de ser alma e poesia sem mesmo tentar ser rima.
    A simplicidade de homem à cavalo que mantém um canto antigo, nos faz ter a certeza que serás imortal, como disseram em um comentário anterior.
    ...E como o cusco, vou aprendendo da lida seguindo teus passos e conselhos...

    Um baita abraço Lisandro!

    Meus Parabéns!

    Lucas Piccinini.

    ResponderExcluir
  7. Parabens Lisandro, ao ler o teu texto sentimos a simplicidade e o clamor do homem do campo. Colocaremos para todos os Macegueiros.

    ResponderExcluir
  8. Parabéns Lisandro pelo belo diario
    Tu és uma força do nosso nativismo Gaúcho
    Feito Bastos nos povoadaos aos quenas e mal costeados um maniador de capincho pra viver sobre o relincho de manadas antigas,que hoje viraram cantigas ao cair da madrugada.
    Que o Santa Fé siga aceso pra aquecer os ilesos que mesmo temem em ser presos por olhares de ranchitos que as vezes prendem o grito no pontero rastreador que logo a duzentos tem boca de corredor.
    "Tarso Rodrigues"

    ResponderExcluir